Sabes tu, porventura, o que vale um dia? Conheces o preço de uma hora? Examinaste, já, o valor do tempo? Decerto não, porque o deixas passar, alegre, descuidado da hora que, fugitiva e secreta, te leva preciosíssimo roubo. Quem te disse que o que já foi voltará, quando te for preciso, se o chamares? Dize-me: viste já alguma pegada do dia? Não! Ele só volta a cabeça para rir e zombar daqueles que assim o deixaram passar.
Quevedo
Envelheci, tenho muita infância pela frente.
Fabrício Carpinejar
Quando sonho, o tempo reina absoluto, síntese de tudo o que vi e senti. É quando ele é real, quase carnal, presente e tirânico.
É assim que sempre me lembro do tempo — matéria de sonho, fulgor inquietante da consciência de repente despertada, amigo procurado e bem-vindo, conselheiro indesejado e muitas vezes incompreendido, irmão mais velho, fonte de memória e reconhecimento.
Espelho sem fundo é o tempo no qual mergulho em busca de mim mesmo. Nessa busca, minha memória não é bastante para que eu chegue aos tempos primordiais. Por isso, parte de toda a história só posso supor e, para essa parte, peço sua compreensão e tolerância em relação ao que imagino, já que, para ser estrito, dela não poderia me valer.
Despenco no abismo da existência até ao tempo em que fui um fragmento de cascalho ou broto minúsculo de gramínea sobre a qual os dinossauros se deitavam para tomar sol. Mas já naquele tempo minha memória vegetal havia gravado trechos de eras ainda mais antigas, de lutas e angústias sob o mar, no escuro das locas profundas e da matéria gelatinosa das plantas onde eu, minúsculo girino, me escondi dos temíveis predadores subaquáticos.
Foram milênios debaixo d’água.
O sol me salvou ao lançar-me no gelo que cobria toda a crosta por onde a vida ao ar livre se movia. No entanto, durante muitos séculos, só o que ouvi foi o silêncio do cristal que produz a rocha em segredo, a gota congelada que prepara o diamante longínquo, o carvalho colossal alimentado desde o berço pela umidade do rio próximo e o vento que transportou e esculpiu as cavernas e abrigos onde muito depois vim a morar.
Antes, porém, fui fera. Matei e comi animais maiores e menores que eu, rasguei e mastiguei dorsos e pernas, dividi tripas e músculos com a matilha, fui dilacerado e morto mil vezes, uivei e lambi, saltei e cacei no deserto. Até me sustentar sobre as pernas e perceber que meu peito me dizia coisas difíceis de entender e às quais eu respondia ora com violência, ora brandamente.
Mas muito mais difícil é a vida humana, acreditem. A força da fera desaparece, os sentidos enganam, o medo se aproveita de todas as brechas, os sentimentos impedem o gesto mais sensato, a inteligência não consegue prever tudo, os homens nos confundem e nos frustram. A longa marcha da humanidade se apresenta a nós na forma do desfile doloroso de prisioneiros forçados, puxando com cordas o peso insuportável de suas misérias, enquanto são castigados pelo chicote da própria consciência.
(continua)