Sabes tu, porventura, o que vale um dia? Conheces o preço de uma hora? Examinaste, já, o valor do tempo? Decerto não, porque o deixas passar, alegre, descuidado da hora que, fugitiva e secreta, te leva preciosíssimo roubo. Quem te disse que o que já foi voltará, quando te for preciso, se o chamares? Dize-me: viste já alguma pegada do dia? Não! Ele só volta a cabeça para rir e zombar daqueles que assim o deixaram passar.
Quevedo
Envelheci, tenho muita infância pela frente.
Fabrício Carpinejar
Quando sonho, o tempo reina absoluto, síntese de tudo o que vi e senti. É quando ele é real, quase carnal, presente e tirânico.
É assim que sempre me lembro do tempo — matéria de sonho, fulgor inquietante da consciência de repente despertada, amigo procurado e bem-vindo, conselheiro indesejado e muitas vezes incompreendido, irmão mais velho, fonte de memória e reconhecimento.
Espelho sem fundo é o tempo no qual mergulho em busca de mim mesmo. Nessa busca, minha memória não é bastante para que eu chegue aos tempos primordiais. Por isso, parte de toda a história só posso supor e, para essa parte, peço sua compreensão e tolerância em relação ao que imagino, já que, para ser estrito, dela não poderia me valer.
Despenco no abismo da existência até ao tempo em que fui um fragmento de cascalho ou broto minúsculo de gramínea sobre a qual os dinossauros se deitavam para tomar sol. Mas já naquele tempo minha memória vegetal havia gravado trechos de eras ainda mais antigas, de lutas e angústias sob o mar, no escuro das locas profundas e da matéria gelatinosa das plantas onde eu, minúsculo girino, me escondi dos temíveis predadores subaquáticos.
Foram milênios debaixo d’água.
O sol me salvou ao lançar-me no gelo que cobria toda a crosta por onde a vida ao ar livre se movia. No entanto, durante muitos séculos, só o que ouvi foi o silêncio do cristal que produz a rocha em segredo, a gota congelada que prepara o diamante longínquo, o carvalho colossal alimentado desde o berço pela umidade do rio próximo e o vento que transportou e esculpiu as cavernas e abrigos onde muito depois vim a morar.
Antes, porém, fui fera. Matei e comi animais maiores e menores que eu, rasguei e mastiguei dorsos e pernas, dividi tripas e músculos com a matilha, fui dilacerado e morto mil vezes, uivei e lambi, saltei e cacei no deserto. Até me sustentar sobre as pernas e perceber que meu peito me dizia coisas difíceis de entender e às quais eu respondia ora com violência, ora brandamente.
Mas muito mais difícil é a vida humana, acreditem. A força da fera desaparece, os sentidos enganam, o medo se aproveita de todas as brechas, os sentimentos impedem o gesto mais sensato, a inteligência não consegue prever tudo, os homens nos confundem e nos frustram. A longa marcha da humanidade se apresenta a nós na forma do desfile doloroso de prisioneiros forçados, puxando com cordas o peso insuportável de suas misérias, enquanto são castigados pelo chicote da própria consciência.
Naturalmente, a maior parte das histórias de que me lembro como humano são feias e tristes. Tomei parte em lutas ainda mais cruentas que as dos animais, conheci a submissão, vi iniqüidades, traições, vinganças, vilanias. Morri muitas vezes nas guerras, muito jovem, sob bandeiras as mais diversas. Mais de uma vez fui escravo. Minha vida esteve à mercê de senhores boçais e cruéis, sacrificada por quase nada. Outras vezes, menos freqüentes, tive sorte: servi senhores mais razoáveis e em funções mais dignas, graças ao meu gosto pelas letras.
Lembro-me de ter sido sacerdote, diplomata, jurista, professor, comerciante e navegador, entre muitas outras ocupações. Roubei quando não vi outra saída, sujei as mãos com sangue quando perdi a cabeça, mas também amei e fiz o bem para alguns. Somando todas essas vidas, porém, sinto que, apesar de tantas oportunidades e aprendizados, continuo muito longe de me tornar um ser humano cujas qualidades devem ser imitadas.
Tempo dimensões
Mas o que importa, aqui, é o tempo — sempre curto. Em nenhuma dessas existências ele foi suficiente, a ponto de eu ter chegado a desejar a morte antes que ela me pegasse de surpresa. Mesmo nas vidas mais serenas em que fui sacerdote ou professor, e nas quais corri muito menos riscos, podendo assim chegar aos oitenta e tantos anos, ainda aí faltou tempo para que eu realizasse estudos e projetos ou simplesmente tivesse o tanto de vida sonhado pelo meu egoísmo. Era o medo da morte, afinal, que me fazia querer continuar indefinidamente neste mundo.
Ainda bem que me recordo (amarcord!) e tenho memória (em mim mora!), ou isto que eu chamo eu não existiria, nem os lugares e as pessoas que amo, as que desconheço e mesmo as que por vezes detesto sem conhecer. De tempos em tempos me lembro das aulas de filosofia e lógica do colegial e então quero também ser um solipsista — ou seja (aprendi), aquele que acha que só existe no mundo o que ele vê, sente, percebe, entende ou imagina. O resto não é real. Me dou conta, muitas vezes, de que só existe o que os meus sentidos experimentaram, o que despertou meus sentimentos e pensamentos, e estão em minha memória, em mim moram. Com relação às outras coisas, não posso ter qualquer compromisso.
O fascínio despertado pelo tempo (“O tempo não existe; o que existe é a passagem do tempo” – Millôr Fernandes) é algo do qual poucos de nós conseguem afastar os olhos. Em 1909, o jovem Marcel Proust, considerado um dândi talentoso por ter publicado alguns anos antes uma encantadora crônica chamada “Os prazeres e os dias” (1896), estava às voltas com um calhamaço de mil páginas em que se transformara um ensaio que ele havia escrito e guardado.
No verão daquele ano, porém, ao imaginar que o herói de seu ensaio havia sido convidado para passar uma manhã na casa da Princesa de Guermantes, ele tem a revelação do tempo em suas duas dimensões — tempo interior, produzido por reminiscências, e tempo exterior, revelado pelos rostos envelhecidos dos convidados da princesa. Ele então resolve dar um desfecho romanceado ao seu ensaio — que já era recheado de diversas personagens e cenas. O projeto, assim, terminou sendo ampliado de forma monumental nos sete volumes de “Em Busca do Tempo Perdido”.
Até a data da sua morte, Proust trabalhou sem parar em seu projeto: multiplicou retratos e peripécias, reorientou ou expandiu situações e intrigas, acrescentou frases com comparações, para ligar o individual ao geral, vazado num estilo langoroso, de frases e períodos longos e ritmados, mas de descrições precisas e reflexões argutas, até hoje não igualado. Depois de acreditar que seu romance não ultrapassaria as mil páginas, acabou escrevendo mais de três mil. Pingou o ponto final em sua maratona pessoal pelo tempo pouco antes de morrer, esgotado pelo trabalho e por uma bronquite mal-curada, em novembro de 1922. O primeiro volume da série foi publicado em 1913, às próprias custas, e o derradeiro, cinco anos após a sua morte.
Como notou o crítico Jean-Louis Rey, encantado com a forma de se vestir de Madame Swann e com a cultura de seu marido (“No Caminho de Swann”), incomodado com as maneiras vulgares de jovens ciclistas em férias à beira-mar (“À Sombra das Raparigas em Flor”), ávido por convites para os salões onde são trocadas futilidades (“No Caminho de Guermantes”), torturado por amores que não valem a pena (“A Prisioneira” e “Albertina Desaparecida”), o herói de “Em Busca do Tempo Perdido” – que se confunde muito mais com Proust do que o narrador que diz “eu” – traz em si uma obra-prima.
Quando o caminho percorrido pelo herói encontra finalmente o tempo (que lhe permite reencontrar o seu eu), ele evoca o tortuoso caminho do puro cavaleiro Parsifal, em busca do Santo Graal.
Como nos romances de cavalaria, alguns dos protagonistas que Proust coloca em cena param no meio do caminho. O simpático Swann, por exemplo, teria preferido enriquecer sua vida com belezas prontas em vez de produzir belezas da sua própria autoria.
Em Balbec, o herói de “Em Busca do Tempo Perdido” aprende que as velas de regata ou os vestidos das moças não atrapalham, aos olhos de um pintor impressionista, o espetáculo do mar eterno. Para ele, o mundo exterior só interessa quando permite uma alquimia do eu. Ao fazê-lo recordar involuntariamente de uma passagem de sua infância, o sabor de uma pequena Madeleine tem a mesma importância para o autor que o então rumoroso caso Dreyfus, que agitava a Europa.
Apesar de tudo, sua imagem de pessoa frívola terminou por produzir quem sabe o episódio mais célebre de erro de avaliação literária já cometido por um grande nome da literatura. No caso, a famosa recusa pela editora da Nova Revista Francesa (NRF) de “No Caminho de Swann”, em 1912, do primeiro volume de “Em Busca do Tempo Perdido”. Folheando o manuscrito, André Gide entreviu nele, como seria de esperar, apenas histórias de duquesas. Gide diria mais tarde ter sido este o maior remorso de sua vida — o de ter passado ao largo do sentido de uma imensa obra em gestação.
E a memória?
O que resta a quem perde a memória? Muito pouco, pode-se garantir. Deve ser mais ou menos como Neil Simon, corrosivo e nova-iorquino, definiu o estilo de vida do ensolarado estado do oeste americano, em “California Suíte”. “É como o paraíso depois da lobotomia”, debochou o dramaturgo. Melhor talvez fosse perder a visão, ou a visão e a audição, e mesmo assim estar em vantagem em comparação com o desmemoriado.
A literatura e o cinema têm exemplos excelentes de tramas angustiantes envolvendo personagens que de repente são engolidos pela amnésia causada por um trauma físico ou psíquico que eles desconhecem. Durante às vezes centenas de páginas ou dezenas de minutos de projeção, os mais diversos sofrimentos, perigos e mal-entendidos tiram o sossego do leitor/espectador, até que o herói ou heroína recupere sua condição de se identificar com o resto da humanidade pela consciência trazida pela memória.
Em nossa vida cotidiana somos quase sempre levados a achar que a perda de memória está associada exclusivamente ao processo de envelhecimento. Não é assim. Segundo os cientistas, essa perda, que começa na verdade por volta dos 25 anos, não é aleatória. É, ao menos em parte, explicada por uma adaptação do cérebro a esse novo estágio da vida. As células relacionadas às atividades menos utilizadas são desativadas para concentrar esforços em áreas mais necessárias ao novo cotidiano.
Portanto, o esquecimento é algo normal em qualquer idade, pois para aprender uma nova habilidade ou realizar uma nova tarefa — explicam os pesquisadores da memória —, nosso cérebro tem de estabelecer novas conexões, o que significa que muitas ligações antigas precisam ser desativadas. De outra forma interfeririam nas novas e não conseguiríamos aprendê-las ou realizá-las.
Com a idade, há outro complicador: o acúmulo de perdas de neurônios. Durante toda a vida, nosso cérebro se desfaz diariamente de 50 a 100 mil dessas células devido a traumas ou à ação tóxica dos radicais livres. Os cientistas ensinam que radicais livres são resíduos de células saudáveis que contêm elétrons desemparelhados. Em busca de estabilidade, eles então “arrancam” elétrons de todo componente celular que encontram pela frente, e os destroem. Como células nervosas não se reproduzem, o número de neurônios diminui cada vez mais.
Uma vez que nascemos com muito mais neurônios do que precisamos — em torno de 12 bilhões —, os efeitos dessas perdas diárias só são sentidos muitos anos depois, quando chegamos à velhice.
Com menos células, o cérebro então precisa fazer escolhas vitais, como estabelecer que atividades devem continuar e quais podem ser desativadas. Resultados de pesquisas mostram que a escolha não é feita ao acaso, mas relacionada ao tipo de vida que o indivíduo leva. Conexões usadas com freqüência permanecem. As menos utilizadas são deixadas de lado e se desfazem.
Para se proteger, qualquer pessoa — não só os idosos —, conta também com mecanismos psicológicos de esquecimento. É o caso doloroso de exilados que esquecem a língua materna como forma de evitar recordações que produzam saudade ou, pior ainda, de idosos maltratados ou abandonados pela família, que deixam de reconhecer os parentes. Para eles, é mais fácil apagar a pessoa da memória do que conviver com a dor da injustiça e da rejeição.
Espraiado
O tempo deixou alguns fragmentos, situações, sentidos e visões pregados em minha memória de menino. Um deles é o cheiro adocicado da graxa caída nos dormentes e pedriscos de uma estrada de ferro. Muito pequeno, manhã de sol, me vejo levado pela mão nos passeios a pé pela linha de trem perto de onde a família passou alguns períodos de férias, na casa do tio, chefe de estação da Cia. Paulista de Estradas de Ferro.
Na volta da caminhada, cansado, um primo adolescente de pernas finas e compridas me põe sobre seus ombros para eu não retardar o ritmo do grupo. Uau! — isso me deixa ver os campos cultivados ao longe, com vários tons de verde, o gado pastando na montanha mais além e as chaminés fumegantes das casinhas amarelas dos empregados da ferrovia nas quais, àquela hora, se preparava o almoço em fogões de lenha. Muito adequadamente, aquele lugar do interior do estado se chamava Espraiado.
Outros cheiros agradáveis daqueles dias continuam comigo: o dos tufos de erva-cidreira plantados ao longo de toda a ferrovia para prevenir desbarrancamentos (o chá calmante feito com ela recebia o nome de chá-de-beira-de-estrada), e outro, contendo o que me parecia ser então uma estranha mistura de pomada de eucalipto com fritura de azeite de oliva, na casa da família vizinha à nossa, em São Paulo.
Como era uma família amiga, de protestantes, as duas condições ficaram desde então associadas em minha memória por alguma química curiosa, e ainda hoje, quando por acaso sinto o mesmo perfume incomum, digo para mim mesmo: “É cheiro de protestante”. Quando eu tinha 5 anos, Stanley, o filho mais velho desses vizinhos, já rapaz, me salvou de um tipo mal-encarado, que me prometeu um cachorrinho se eu deixasse a soleira da porta de casa, onde estava brincando, e fosse com ele buscar o filhote. Eu estava quase indo com o desconhecido quando Stanley surgiu e o pôs para correr.
Final dos anos 1940, os sucessos do rádio, para o menino pequeno daqueles anos, eram Dorival Caymmi (“Peguei um Ita no Norte”, “Marina” etc.), Ary Barroso (“Na Baixa do Sapateiro”), o então jovem e promissor Dick Farney (“Copacabana”), as Irmãs Meireles (“Joselito”) e a também portuguesa Amália Rodrigues, o engraçadíssimo e inteligente humorístico PRK-30, os programas da Rádio Nacional (o sensacional seriado radiofônico “Jerônimo, Herói do Sertão”), a orquestra de David Rose (“Holiday for Strings”, “Let’s Face the Music and Dance”), Dizzy Gillespie (“Caravan”), Billy Eckstine (“Stormy weather”), o francês Jean Sablon (“Douce France”, “Un jour tu veras”) e os mambos e boleros mexicanos e caribenhos em geral. Quando ouço qualquer dessas canções, volto àquela casa, ao hipnótico ambiente da primeira infância, onde sonho e realidade se misturam.
Na mesma época, algumas figuras assustadoras freqüentavam o quarteirão onde morávamos eu e minha irmã, dois anos mais velha que eu. A uma delas nós demos o nome de Dama da Meia-Noite — uma pobre mulher perturbada, já de idade, magra, encurvada, cabelos brancos desgrenhados, que mendigava pelo bairro e vestia sempre um velho e arruinado tailleur roxo, ganho de alguma alma caridosa. Nós morríamos de medo dela, naturalmente, pelo aspecto de bruxa, mas apesar disso gostávamos de provocá-la gritando “Dama-da-Meia-Noite!, Dama-da-Meia-Noite!”, quando ela passava próximo à nossa janela.
Ela então se enfurecia e corria na nossa direção. Nós batíamos a veneziana da janela e corríamos para nos esconder debaixo da máquina de costura onde nossa mãe trabalhava naquelas horas. Havia também o “Homem do Saco”, figura terrível e nunca vista, que diziam que raptava crianças e as carregava num saco que levava às costas, e um velhinho também maltrapilho e real, um pobre entregador de marmitas que nós temíamos. Era outro dos ogros que criávamos com nossa imaginação infantil para assombrar e povoar de emoções o cotidiano banal.
Bobbio e Tolstoi
O poeta Carlos Vogt publicou há algum tempo na “Com Ciência”, revista eletrônica de jornalismo científico, da qual é o editor-chefe, um saboroso artigo em que inventaria uma quantidade de obras literárias e cinematográficas que têm a passagem do tempo como tema principal. Sua longa seleção de referências termina com a citação a “No seu septuagésimo quinto aniversário”, do poeta romântico inglês Walter Savage Landor.
Vogt destaca a bela tradução deste poema feita por José Lino Grünewald, que faz justiça à beleza sonora, lírica e poética do original:
Lutei com nada e nada valia a lida.
Amei a Natureza e logo após a Arte;
Aqueci as mãos ante o fogo da vida;
Tudo se afunda e estou como quem já parte.
Em “Como e Por Que Ler”, Harold Bloom aponta este poema como um de seus preferidos, e faz o seguinte comentário: ”Quando se chega aos setenta e cinco anos de idade, mesmo sabendo que a quadra contém uma inverdade, tem-se a vontade de sair por aí murmurando o epigrama no dia do aniversário, em homenagem a si mesmo e a Savage Landor”.
Em “O Tempo da Memória: de Senectute e Outros Escritos Autobiográficos”, escrito quando o autor já tinha mais de oitenta anos de idade, e publicado no Brasil em 1997, encontramos um Norberto Bobbio que pouco tem a ver com o pensador erudito, profundo e cristalino que fez dele um dos mais importantes filósofos do século 20.
Neste livro, ao tratar da velhice, Bobbio é melancólico, porém não se desespera. “Tomar a sério a vida significa aceitar firme e rigorosamente, o mais serenamente possível, sua finitude”, pondera. Mas, ele não glamouriza a velhice e critica os que o fazem. Considera que resta ao idoso viver o “tempo da memória”, projetar-se para o passado, freqüentemente com a consciência do não-realizado e do não mais realizável. É um momento de prostração — diz —, de balanço final, e reforçam essa constatação a lentidão, a lerdeza de movimentos, a dificuldade para lembrar ou o desinteresse em conhecer o novo.
Em contrapartida, a melancolia inerente à velhice é suavizada pela “constância dos afetos que o tempo não consumiu”. Bobbio percebe que o tempo dos velhos é a memória dos afetos, não a memória construída pela razão, que também é consumida pela idade. Assim, no final do texto, ele afirma que não foi do seu trabalho que obteve as alegrias mais duradouras da vida, mas das pessoas que amou e que o amaram.
Diante do livro de Bobbio, outro texto igualmente tocante vem agora à minha memória — “A Morte de Ivan Illicht”, de Leon Tolstoi, porque em ambos os livros os narradores têm a consciência da morte inevitável e não caem em sonhos escapistas. Um está vitimado por uma doença incurável, o outro pela velhice, mas, enquanto a vida de Ivan é um desperdício, da qual pouco resta — evidência que lhe vem à mente no leito de morte —, a de Bobbio se sustenta nas boas lembranças afetivas, aquelas que ficam para seus familiares e amigos.
No comparativo com “Ivan Illicht”, Bobbio leva uma clara vantagem: embora de pouco valor efetivo para ele, seu trabalho o projeta para a eternidade. O pensador morre, afinal, aos 94 anos (no início de 2004), conformado com a finitude, gratificado por boas lembranças, mas melancólico ao saber que este é o tesouro que lhe resta na falta da expectativa de uma vida ainda mais longa. Fica para nós, leitores, o Bobbio pensador, vivo na “biblioteca de Babel” de Borges, talvez a única que possa ser vivida eternamente, exatamente porque não é uma vida humana.
Manuelzão
O vaqueiro velho e solteiro Manuelzão, passado dos 60 anos, cansado de comitivas e boiadas, começa a sentir a idade avançada e a proximidade da morte. Em dívida com a mãe recém-falecida, constrói uma capela, que ela lhe havia pedido em vida, e faz os preparativos de uma festa de consagração da igrejinha construída a Nossa Senhora do Perpétuo Socorro. Esta é a narrativa de “Uma estória de amor”, novela que integra “Corpo de Baile” (1957), de Guimarães Rosa.
Em “Manuelzão” — como é normalmente chamada a estória — Rosa reúne os problemas de saúde do protagonista (a doença do pé e a falta de ar), o temor da morte, as lembranças e o balanço da vida passada, a confirmação de valores como o gosto pelo trabalho e o desprezo pela farra, o zelo pelas decisões e compromissos assumidos, a um vago desejo de recomeçar algo, corrigindo o que no passado não ficou bem resolvido. No íntimo de Manuelzão há, inclusive, a vontade de se casar e constituir uma família verdadeira.
A festa e seus preparativos são a coluna dorsal da estória, que tem, no entanto, como músculos e nervos os pensamentos, sentimentos e lembranças do velho vaqueiro, que vê com preocupação o fim do seu caminho. O tempo cronológico está bem registrado na novela — são os três dias de festa, recheados, porém, pelo tempo psicológico, pois os três dias parecem uma eternidade. Manuelzão se vê diante de situações delicadas, como o reencontro com o filho Adelço, fruto de uma antiga ligação superficial e homem de temperamento intratável e casado com uma mulher de grande beleza, Leonísia, que inspira a Manuelzão desejos perigosos.
Enquanto a festa acontece, lembranças e conversas nos dão conta das outras personagens envolvidas nesse acontecimento. A comemoração transcorre na mais perfeita ordem, enquanto Manuelzão, que a tudo supervisiona, está mergulhado em alguns problemas. O primeiro é a dor constante que sente no pé. O segundo são as incertezas envolvidas na projetada tarefa de conduzir uma boiada.
No final da noite, todos os problemas começam a ser solucionados. Sem perceber, a dor havia sumido e o quadro muda radicalmente de figura quando um dos convidados se propõe a contar uma história. É a lenda do Boi Bonito — narrativa que em alguns pontos se assemelha a um conto de fadas. Um fazendeiro muito rico possui um cavalo que ninguém consegue domar e também oferece em casamento a mão de sua filha a quem conseguir caçar o famoso Boi Bonito, tão belo quanto perigoso. Vários vaqueiros tentam, mas só encontram a morte.
Rosa deixa em aberto o futuro de seu protagonista, e o tom final é de esperança, pois fica no ar a perspectiva de saída da boiada, de reconciliação do vaqueiro com a memória da mãe, com o filho distante e hostil e com um projeto de vida familiar estável há muito esquecido.
Machado
Machado de Assis, o sumo sacerdote da literatura brasileira, tem em sua obra pungentes reflexões sobre o tempo, produto do seu melancólico estoicismo e amargo sentimento do mundo. Além do famoso “Nós matamos o tempo e ele nos enterra”, de “Memórias Póstuma de Brás Cubas”, há ainda o episódio da réplica da casa onde foi criado o protagonista Bentinho, de Dom Casmurro, feita por ele nos anos de esquecimento no subúrbio de Engenho Novo. Como ele escreveu:
“Assim chorem por mim todos os olhos de amigos e amigas que deixo neste mundo, mas não é provável. Tenho-me feito esquecer. Moro longe e saio pouco. Não é que haja efetivamente ligado as duas pontas da vida. Esta casa do Engenho Novo, conquanto reproduza a de Mata-Cavalos, apenas me lembra aquela, e mais por efeito de comparação e de reflexão que de sentimento. Já disse isto mesmo.
“Hão de perguntar-me por que razão, tendo a própria casa velha, na mesma rua antiga, não impedi que a demolissem e vim reproduzi-la nesta. A pergunta devia ser feita a princípio, mas aqui vai a resposta. A razão é que, logo que minha mãe morreu, querendo ir para lá, fiz primeiro uma longa visita de inspeção por alguns dias, e toda a casa me desconheceu. No quintal a aroeira e a pitangueira, o poço, a caçamba velha e o lavadouro, nada sabia de mim. A casuarina era a mesma que eu deixara ao fundo, mas o tronco, em vez de reto, como outrora, tinha agora um ar de ponto de interrogação; naturalmente pasmava do intruso. Corri os olhos pelo ar, buscando algum pensamento que ali deixasse, e não achei nenhum. Ao contrário, a ramagem começou a sussurrar alguma cousa que não entendi logo, e parece que era a cantiga das manhãs novas. Ao pé dessa música sonora e jovial, ouvi também o grunhir dos porcos, espécie de troça concentrada e filosófica.
“Tudo me era estranho e adverso. Deixei que demolissem a casa, e, mais tarde, quando vim para o Engenho Novo, lembrou-me fazer esta reprodução por explicações que dei ao arquiteto, segundo contei em tempo”.
Sem o homem não há tempo, disse Heidegger. E, para o psicanalista inglês Donald Winnicott, o homem é um exemplar do tempo.
Desde o início de sua vida, ele se vê diante da temporalidade, seja como algo alheio ao seu sentido de ser ou como elemento de sua própria subjetividade. O homem vive no tempo, relaciona-se com ele, é o próprio tempo, embora a maioria das pessoas faça dele um monstro devorador, uma ameaça à existência.
Apesar disso, o ser humano amadurece é com suas experiências ao longo do tempo e, nesse processo, “Cronos” torna-se seu amigo. O pensador persa Rumi, no século 13, dizia que embora o ramo pareça ser a causa do fruto, o fruto é que é na verdade a causa do ramo — o que leva à conclusão de que o ser humano busca a maturação e a auto-realização, e, nesse processo, apresenta-se ao mundo de modo singular.
Três vias
Aprendemos que há diferentes sentidos de tempo: o cósmico, o histórico, o existencial. Como explica Berdiaeff, o filósofo existencialista: “O tempo cósmico é calculado matematicamente sobre o movimento de rotação em torno do sol. Com ele se estabelecem os calendários e os relógios. Ele é simbolizado por um turbilhão. O tempo histórico está como que encaixado no tempo cósmico e se pode contá-lo matematicamente por dezenas de anos, por séculos, por milênios. Nenhum fato, porém, se repete na linha do tempo. Prova disso é a famosa frase ‘A História só se repete como farsa’. Está simbolizado por uma flecha dirigida para o futuro, para a novidade. O tempo existencial não se calcula matematicamente. Seu curso depende da intensidade com a qual se vive nele, depende de nossos sofrimentos e de nossas alegrias”.
Ou, para citar Vieira: “Nem todos os anos que passam se vivem: uma coisa é contar os anos, outra é vivê-los”.
Também se pode dizer que o tempo cósmico está caracterizado pelo movimento cíclico e ritmado que torna a vida humana na terra igual aos fenômenos naturais, com começo, meio e fim. O tempo histórico é produto da ação do homem, fundada na liberdade e prolongada através das gerações. E o tempo existencial é o “eterno agora”, livre do tempo cósmico e histórico. É o tempo do ser, no qual o homem vive o fruir do agora. Para alguns, é nele também que acontecem as experiências do sagrado, em que a ação humana abre a possibilidade de o divino acontecer no mundo.
Sem dúvida, é no espaço do sagrado que o tempo encontra o seu sentido mais amplo, definitivo e assustador, fazendo-nos querer repetir a desesperada interpelação de Rainer Maria Rilke nas Elegias de Duino: “Quem, se eu gritasse, me ouviria em meio à hierarquia dos anjos?”. Para resumir com pavor no verso seguinte: “Todo anjo é terrível!”.
“As Elegias de Duino” e as “Cartas a um Jovem Poeta”, de Rilke, eram alguns dos ímãs que me puxavam diariamente para a biblioteca do colégio na adolescência, ao descobrir o fascinante mundo dos livros adultos. Livros, antes disso, eram coisas já razoavelmente familiares ao menino, que às vezes os ganhava como presente de aniversário. Com estes eu tinha viajado nos romances de Alexandre Dumas e Julio Verne, no mundo encantador do Sítio do Pica-Pau Amarelo e outros best-sellers infantis da época.
Mortos na areia
Leandro Dupret pegava algumas caronas na coleção Tesouro da Juventude da minha irmã mais velha, tirava umas casquinhas da coleção ricamente encadernada de Seleções do “Reader’s Digest” do pai — me lembro em especial das seções “Meu tipo inesquecível” e “Piadas de caserna”, invariavelmente ambientadas no alegre (!) dia-a-dia de militares americanos durante a Segunda Guerra Mundial.
Era, para mim, uma guerra “light”, já que Seleções, então como agora, exalava triunfalismo norte-americano por cada uma de suas páginas. Um pouco de realidade eu veria logo depois com outra carona, esta importante — na assinatura que a irmã mais velha recebia, por estudar inglês, da revista “Life”. Já era, então, época da bela cobertura da Guerra da Coréia, feita por grandes fotógrafos da imprensa americana.
Eram bonitas e chocantes fotos preto e branco, de página inteira, de campos de batalha, em que apareciam quase sempre dezenas de corpos de jovens soldados mortos, caídos de bruços na areia molhada de alguma praia asiática, capacetes rolados de lado, fuzis ainda presos aos braços sem vida, botas enfiadas na areia. Foi o primeiro, terrível mas irresistível contato com o melhor do jornalismo hardnews da época, que possivelmente — sem que eu soubesse — definiria minha futura escolha profissional.
“Life” também reforçava poderosamente, ao lado do cinema, o americanismo inoculado em toda criança e jovem daqueles anos. Quando minha irmã permitia, eu gostava de folhear as páginas da revista (ainda sem leitura, por não entender inglês), apreciar a pacífica e luterana superioridade das casas americanas de tabuinhas e cercas de madeira branca e vastos gramados salpicados de folhas vermelhas do outono.
Um ideal material a ser perseguido, embora, nas páginas seguintes da revista, eu pudesse encontrar, também com a ajuda de grandes fotos, as evidências de uma sociedade racista e cruel. Mas, pobre Fausto que eu era então, os anúncios de automóveis, sopas Campbell’s, calças jeans, refrigerantes ou cigarros compraram minha alma por poucos centavos, assim como — eu via no cinema — os soldados americanos faziam com os meninos pobres dos países onde guerreavam.
Aos poucos, imaginando não ser percebido pela família, passei a avançar na parte da estante reservada aos livros adultos. Comecei pelas preferências literárias de meu pai e sucessos editoriais mais antigos, como W. Somerset Maugham (“Histórias dos Mares do Sul”, “O Fio da Navalha”, “Servidão Humana”), Aldous Huxley (“Contraponto”, “Admirável Mundo Novo”), Thomas Mann (“A Montanha Mágica”, “José e Seus Irmãos”, “Tônio Kroeger”, “Morte em Veneza”, “Os Buddenbrooks”), Ernest Hemingway (só “O Velho e o Mar”, naquela altura) e as coleções de contos da literatura universal, de biografias breves de filósofos, músicos, escritores, grandes pintores e religiosos etc.
Quando cheguei ao colegial (no então curso clássico, para os alunos que se destinavam à área das ciências humanas), literatura, história e filosofia eram matérias centrais. A literatura brasileira e portuguesa — que eu até então achava um tanto insossas, pois só tinha lido, por obrigação escolar, algumas novelas adocicadas de José de Alencar (“Iracema”, “O Guarani”) e o Machado de Assis da fase romântica (“Iaiá Garcia”, “A Mão e a Luva”) — foram então uma surpresa inspiradora. Ser apresentado às cinco fundamentais novelas realistas de Machado (discutíamos, os alunos, qual a melhor, se “Memórias Póstumas de Brás Cubas” ou “Dom Casmurro”; nosso professor preferia a primeira, pois julgava Bentinho, protagonista da segunda, “um fraco”) — representou um marco na nossa educação.
O mesmo mestre — um humanista de vasta calva, verve cearense e sólida cultura parnasiana — nos ensinou a saborear Eça de Queirós, seus maravilhosos personagens, sua fluência, sua ironia, sua pena rápida e cortante. Hoje, a cada cinco anos pelo menos, procuro reler Machado ou Eça, para sentir de novo o prazer de ter diante dos olhos o verdadeiro talento literário.
Ao chegarmos ao modernismo, abriram-se todas as outras portas da literatura brasileira, de “Macunaíma” a “João Miramar”; de Clarice Lispector, Drumond, Guimarães Rosa, João Cabral de Mello Neto, Stanislaw Ponte Preta e Mario Faustino. E o resgate de diversos luso-brasileiros do passado e de todos os autores do mundo. Depois disso, estávamos definitivamente contaminados pela escrita. Alguns de meus colegas se tornaram autores conhecidos, colunistas, nomes de respeito do cenário cultural brasileiro. Eu permaneço na escola.
Povo unido
Aí já estávamos no início dos anos 1960, nunca suficientemente louvados: primavera brasileira, flor perfumada e leve como os barquinhos, o céu azul e a vista do Corcovado das letras poéticas e de bom-gosto das canções cantadas por Silvia Teles e João Gilberto. O Rio de Janeiro era o caroço do Brasil, onde moravam, trabalhavam e principalmente se divertiam e amavam os artistas, os intelectuais, os poetas e até os militares.
Nós líamos o “Jornal do Brasil”, reformado por Odilo Costa Filho para se tornar um exemplo de jornalismo moderno (atestado de genialidade, na época, era ser copidesque do jornal, como Nelson Pereira dos Santos e Armando Nogueira), o irreverente “Correio da Manhã”, da viúva Bittencourt, “Última Hora”, com as colunas imperdíveis de Nelson Rodrigues, Antonio Maria e Stanislaw Ponte Preta, as crônicas semanais de Rubem Braga, Paulo Mendes Campos (meu predileto), Fernando Sabino e Carlinhos de Oliveira na Manchete, as colaborações de Guimarães Rosa, Carlos Drumond de Andrade, Paulo Francis e outros na revista “Diners”.
Porém, quem lê também se politiza — é inevitável. E, naqueles dias, politizar-se era quase sempre azedar, negar, fulminar instituições, governantes e reputações, alinhar-se automaticamente em relação a alguém por causa de suas posições políticas, mais do que por sua obra e sua contribuição à cultura. Quase todos os nomes que admirávamos lutavam pela liberdade e pela dignidade, estavam do nosso lado e eram endeusados por nós. Mas havia também gente boa do outro lado e falsos valores do nosso, de que só nos daríamos conta anos mais tarde. Como escreveu Nelson Rodrigues — ele próprio vítima do fanatismo vigente — “toda unanimidade é burra.”
As redações, quando as conheci, eram ambientes apaixonados, com alto teor emocional — falava-se, discutia-se, prometia-se, brigava-se mais do que se produzia efetivamente, tendo sempre como alvo e desculpa a ditadura. Os colegas eram classificados invariavelmente por suas posições políticas, podendo ser, portanto, um “cara OK” (neutro), “babaca” (ingênuo), “mau-caráter” (oportunista, carreirista), “dedo-duro” (perigoso, suspeito) ou “policial/dedo-duro/mau-caráter, filho da puta”, tudo junto (geralmente ocupantes de posições de chefia e administração das redações).
Nossa energia era canalizada muito mais para o botequim e as assembléias de estudantes e de grupos políticos do que para o trabalho jornalístico propriamente. Passávamos no departamento fotográfico e em seguida pegávamos os carros de reportagem pelas 11 horas da manhã, levando no bolso de trás da calça — além de um maço de laudas para as anotações — quatro ou cinco pautas a serem cumpridas naquele dia. Eram geralmente matérias curtas, numa época de poucas editorias. Então levantávamos matérias para o noticiário da cidade, para política, polícia, educação, saúde, eventualmente economia e cultura. Freqüentemente saíamos direto de uma favela para o palácio do governo, para cobrir algum ato oficial, percorrendo em poucos minutos os extremos da pirâmide social brasileira.
Algumas das pautas “caíam”, isto é, não correspondiam ao que o repórter encontrava ou se mostravam infundadas. No final da tarde, voltávamos para a redação para escrever dois ou três textos de, em média, 80 linhas (quatro laudas) cada um, nas pesadas Olivettis parafusadas em velhas escrivaninhas de aço Fiel, de uso coletivo. Missão cumprida, corríamos para o botequim, os amigos, as cervejas e as utopias. Quando nos tornávamos mais experientes, recebíamos pautas mais ambiciosas, séries de reportagens publicadas nos fins de semana, que produzíamos paralelamente ao noticiário do dia-a-dia. Viajávamos para investigar casos policiais ou políticos ainda obscuros, e, nos fins de semana, nos sentávamos nos lugares dos chefes de reportagem e dos editores, em substituição a eles.
Naqueles tempos paranóicos, pouco ou quase nada havia de literatura especializada em comunicação. Nossa escola de jornalismo eram as estórias curtas de Hemingway, os autores do New Journalism, Truman Capote, Norman Mailer, as novelas de Faulkner, as revistas “New Yorker”, “Esquire” e “National Lampoon”, a seção Gente da “Time”, quando editada por Rudy Garcia, e a recém-surgida onda de autores latino-americanos praticantes do realismo fantástico, como Juan Rulfo, Gabriel García Márquez, Carlos Fuentes, Julio Cortazar, Augusto Roa Bastos, Adolfo Bioy Casares e outros.
No Rio de Janeiro, o jornalista Muniz Sodré editava ainda timidamente os primeiros cadernos de jornalismo da PUC-RJ, enquanto nascia em S. Paulo a escola da Fundação Cásper Líbero. Para não falar da literatura engajada de Eduardo Galeano, Gramsci, Sartre e toda a saga de articulistas e dos autodenominados humoristas brasileiros publicados pelos jornais “Opinião”, “Movimento” e “Pasquim”.
Filhos crescendo, trabalheira doméstica, ambientes profissionais cada vez menos francos e risonhos, jornalismo imaginativo trocado por jornalismo de serviço, orçamentos apertados, menos tempo para ler os autores prediletos, jornais e revistas querendo equivocadamente copiar os meios eletrônicos, constatação de que a utopia se esfumaça e nos abandona quando ficamos assim tão…cotidianos. Os sonhos continuam, mas ficam bem mais distantes, jogados para um tempo futuro que se estreita à medida que os anos avançam.
Maturidade
A idade madura é aquela em que a realidade se impõe a nós, muitas vezes até nos surpreendendo positivamente em relação a algum cálculo pessimista que fizemos anos antes, ao antevermos situações a serem vividas. Mas também nos repagina, mostra dolorosamente que algumas presunções da juventude a respeito de nós mesmos não têm fundamento ou são muito menos viáveis do que imaginávamos. Somos convencidos a reconhecer nosso próprio tamanho.
A maturidade realinha os valores eleitos por nós nos anos em que estávamos subindo as escadarias, nos faz redirecionar nossos interesses para o próximo, já que nos foi dado aprender a amar e aceitar os pais, ainda que tardiamente, a companheira, os filhos, os netos. O amor ao próximo, então — qualquer próximo —, pode passar a ser uma experiência real, sem utopias, e isso nos consola e recompensa. Mostra que a vida não foi inútil, embora não tenhamos muitas vezes realizado plenamente o que desejávamos.
A velhice ainda não é agora, no ponto onde me encontro. Se eu for cuidadoso com a saúde, posso ter talvez a expectativa de uma década pela frente sem depender de estranhos ou de familiares tolerantes para atravessar as ruas, dirigir veículos, viajar, ler, escrever etc. Depois é que virão os anos de cristal, de fragilidade e dependência de outros para fazer quase tudo. O tempo de aceitar a vulnerabilidade. Concordo com Scott Fitzgerald, para quem a vida é um processo contínuo de desmoronamentos.
Criança pequena, eu me sentia inexpugnável, brilhante, poderoso, capaz de fazer o que quisesse. O tempo me colocou os limites, ergueu cercas, estreitou horizontes, me tornou mais um. Peço a Deus que eu não tenha de pagar justo no tempos de cristal pelos malfeitos do passado, uma vez que já venho acertando algumas contas nos anos de vida adulta e de maturidade que tenho vivido.
Espero que nesses anos eu possa voltar aos prazeres da leitura e da escrita, deixados de lado nos períodos de maior atividade produtiva. Que eu possa viver o tempo que tiver de viver com dignidade singela, levando comigo o mesmo sentimento de alegria e gratidão de que falou Norberto Bobbio em relação aos que ele amou e que o amaram. Que o pêndulo do tempo, amigo e acolhedor, me transporte com suavidade carinhosa, sem rancores ou carências, para o novo.
Vittorio Gassman, o ator, disse numa entrevista que achava que o homem deveria viver duas vidas: uma para ensaiar e, só depois, a definitiva, vivida sem erros, arrependimentos e mal-entendidos. Quanto a mim, ao contrário de Gassman, não espero ganhar qualquer prêmio de interpretação por meu desempenho (medíocre) ao viver o que me coube. Mas ficarei contente se puder deixar a cena recebendo o sorriso benévolo de uma pequena platéia de amigos. (Sebastião Aguiar)